domingo, 5 de agosto de 2018

CULINÁRIA CONTEMPORÂNEA


Tinham uma tradição. Todos os dias dos namorados, evitavam os restaurantes lotados e preparavam o próprio jantar romântico em casa. Um ficava com o prato principal, o outro com a sobremesa, sorteados ano a ano, por justiça. Para evitar desencontros no cardápio, sorteavam também um tema, que variava desde “França” até algo misterioso, como “Paraísos Fiscais”, ou levemente ameaçador, como “Hannibal”. O tema deste ano era a “A Mesa Voadora”, proposto por ele. Ela não sabia muito bem o que isso significava. Sabia apenas que era um livro de crônicas gastronômicas do Veríssimo, que ela não leu. Ele havia lido 3 vezes. Após alguns dias de reflexão, ele levantou-se triunfante do sofá e declarou solenemente:
- Eu gostaria de anunciar formalmente que eu descobri o que vou fazer para o Dia dos Namorados, que vai ser muito massa e que vai fazer você me amar mais.
Ela deu de ombros. Sabia que ao chegar a data teria algum insight e faria alguma coisa muito boa, provavelmente envolvendo chocolate ou limão – mas sem muita fruta, ou ele faria cara feia.
O dia 12 de junho veio e foi, e ambos concordaram que seria sábio adiar a comemoração. Com o Euro do jeito que está e o Bolsonaro liderando as pesquisas, não é mesmo época para preciosismos. Selecionaram, enfim, a data, em um dia 4 de agosto, sábado, de agenda livre. Na véspera, ela ainda muito sem ideia do que fazer. Ele, inspiradíssimo!
- Só pensei 3 pratos até agora.
- Três pratos?!
- Sim! Faltam ainda 2. E que pratos! Que pratos! Les champignons, ma cherie!
Quando o dia finalmente chegou, ela começou a ficar preocupada. Ele, parecia dois anos a frente, em busca de ingredientes exóticos e um tanto preocupantes. Os champignons ela já havia entendido. Frutos do mar, ok. Duas latas de sardinha? Han? Filé mignon suíno, cabeça de peixe, aspargos, coxinha de galinha, mortadela, lecitina de soja, salsinha e parafusos.
Ela decidiu fazer algo com creme inglês, chocolates e maracujá, uma das poucas frutas permitidas.
Chegada a hora da refeição.
- Amor, o tema, na verdade, carecia de um subtema. Isso ficou muito claro para mim naquele dia. Sim. Oui. O livro é um grande comentário à gastronomia. Mas carece de uma atualização. Oui. Un “actualizacion”. Falta ali culinária contemporânea. Eis o tema de hoje! Culinária Contemporânea! Coisas novas! Existentes em outro plano! Habitantes do Zero Grau de Robert Cooper! E através da força pura da ação eu hoje vou revelar coisas novas em nosso mundo, trazidas direto do latente através da comida! Hoje eu não cozinho com as panelas! Mas com ideias! Você irá comer minhas ideias!
Sim, ele, que nunca havia sido muito são, finalmente enlouquecera. Mas pelo menos não havia nenhum sinal de funcho.
- Quero uma fanfarra!!!
- ... han, fanfa...?!
- Les champignons, ma cherie!!!
Mas não eram champignons. Eram aspargos. Mais precisamente, um único aspargo, aberto no meio na parte de baixo, centralizado no prato.








- ... mas nem um molhinho?
- Non é salada para ter molhinho! É “Asperges dans l'eau d'asperges avec le coeur dehors”!!! – Disse ele, com típico sotaque de quem não passou do primeiro semestre no cursinho de francês.
O aspargo sem contexto foi seguido, finalmente, dos champignons. Ufa, melhorando um pouco.
- Les champignons, ma cherie!!! Apresento finalmente essa maravilha da culinária contemporânea, “We are the champignons, une ode à la France championne de la coupe du monde de la FIFA™”!!!

We are the champignons, une ode à la France championne de la coupe du monde de la FIFA™

Que, vá bem, não estavam ruins. Recheados com presunto serrano e bem temperados, pareciam indicar uma melhoria senão na qualidade na comida, pelo menos na categoria contexto.
- Agora, prepara-se para a carne!!!! La meat!!! Les champignon, ma cherie!!!
Antes de cada prato, tombava em frente a ela a placa com o nome específico de cada prato, escrito em francês, provavelmente traduzido no google. “So Screwed! Se souvenir des garçons thaïlandais piégés dans la mine de charbon.”
- Acho que isso resolve o mistério do parafuso. Esse coração de galinha está ao ponto?

So Screwed! Se souvenir des garçons thaïlandais piégés dans la mine de charbon

- So screwed, ma cherie!! Os meninos presos por tanto tempo naquela mina de carvão!!!
- Não era mina de carvão. Você está confundindo o time de futebol da Tailândia com os mineiros presos no Chile. Tira o parafuso antes de comer?
- Oui, ma cherie!!! E não vá comer o carvão também. Le charbon! Magnifique! Les champignon!!!
Ela só conseguia pensar no caminho mais óbvio a partir dali. Se pedia uma pizza ou o divórcio. Pelos cálculos dela, faltavam mais dois pratos. E seria uns 35 reais o Uber para a casa de sua mãe logo depois dele dormir.
- Madame, é chegada a hora da sopa.
A essa altura, qualquer limite entre o português e o francês improvisado já havia sido quebrado.
- Oui, le soup.
- Mas a sopa veio depois dos...
- Shhhhhhh, mademoiselle, deixe que eu cuido de tudo.  
O tom da voz e o sotaque mais pareciam um maitrê capixaba vivendo em Paris a dois meses e que trabalhava como michê para completar a renda. E assim veio a sopa.
- Lula gratuit! La décharge l'a quitté! Une réflexion sur le revirement conservateur en Amérique latine au cours de la décennie 2010.

Lula gratuit! La décharge l'a quitté! Une réflexion sur le revirement conservateur en Amérique latine au cours de la décennie 2010

- Sopa Lula Livre?
Servido em uma lata de sardinha, a sopa constava de um camarão, um mexilhão e um anel de lula coberto por uma espuma, marca típica da mais alta gastronomia molecular. E um pequeno tentáculo de polvo, fugindo no canto do prato.
- Suivant, la piece de resistence!!!
- Vamos acabar logo com isso.
- Paix entre frères: le coxinha roulé avec de la mortadelle gratinée!!!

Paix entre frères: le coxinha roulé avec de la mortadelle gratinée

- Ok, isso é uma coxinha enrolada em mortadela, peraí, isso não é culinária contemporânea, ok, quer dizer, tem uma ideia e é uma reapropriação de comida popular, mas não!!! Não!! Isso não é arte moderna que você vira um mictório do avesso e expõe no Tate! Isso você come e isso não dá para comer!
- Mas você não consegue ver?? Essa é a história que faltava! Comida contemporânea! Espuminha! Veríssimo passa o tempo inteiro falando de comida boa e lugares excepcionais, crônicas sobre comida! E nenhuma linha sobre espuminha ou culinária molecular!
- MAS ISSO AQUI É O MUNDO REAL, NÃO É UMA CRÔNICA DO VERÍSSIMO!
- Não é uma crônica do Veríssimo, mas também não é o mundo real! É uma ficção, uma imperfeita retratação da realidade. Você não consegue ver? Nós apenas existimos nesse documento de word. No mundo real tem um Polvo a Lagareira no forno. Com batatas deliciosas. As pessoas de carne e osso estão rindo dessa história.
- Então você me criou só para passar raiva?? Então porque não fez um Polvo a Lagareira aqui, nessa história? Mesmo que desse errado, eu não ia passar tanta raiva!
- Ora, ora, quer algo mais contemporâneo do que metanarrativas?
- METANARRATIVAS SÃO PÓS-MODERNAS!
- LES CHAMPIGNONS, MAGNIFIQUE!!!





* * *

Polvo a Lagareira

O que precisa

- 800g de Polvo limpo;
- 1 cebola;
- 100 ml de vinho branco;
- Louro;
- Batatas bolinhas (das pequenas, umas 8 por pessoa);
- Uma cabeça de alho;
- Azeite, sal e pimenta do reino;

Como fazer?

- O polvo é basicamente a nossa receita padrão. Coloque os polvos limpos em uma panela de pressão com uma cebola, 100ml de vinho branco, algumas folhas de louro e 5 dentes da alho amassados (nem precisa descascar, lava, amassa e joga lá dentro). Coloque para cozinhar e, assim que começar a dar pressão, baixe o fogo, conte 10 minutos e desligue. Deixe o polvo esfriar ali mesmo, enquanto a panela sai da pressão.
- Não tem panela de pressão? Cozinhe o polvo em uma panela cheia de água, com os mesmos ingredientes, por 50 minutos.  Deixe esfriar ali na água mesmo. 
- Batatas: lave bem as batatas, tempere com sal, coloque em uma assadeira e leve ao forno médio por 40 minutos. 
- Esfriando o povo, retire só ele da panela, tempere com sal e pimenta do reino. Separe os tentáculos deixando 2 ou 3 juntos. 
- Junte o polvo à assadeira com batatas já pré-assadas. Espalhe por cima 8 dentes de alho esmagados e regue com azeite (coloque a quantidade que você curte, mais azeite se você quer algo raiz, menos azeite se quiser algo light, mas coloque azeite por cima).
- Volta pro forno médio por uns 10 minutos, ou até o polvo dourar e pronto.

Originalmente deve-se finalizar jogando muita salsinha picada por cima. Como Veríssimo odeia salsinha, não colocamos. Em respeito.





Servidos com Aspargos, sem salsinha. 



sábado, 26 de agosto de 2017

HOT DOG - SIRIUS @ HOME

Então, esse cachorro encontrou a gente. Não “encontrou”, no sentido de que estávamos perdidos na rua, ou na vida – embora um GPS para a vida seria massa. Nos encontrou pois não éramos nós que estávamos no mercado em busca de cachorros. Mas ele recentemente tinha entrado no grande mercado de cachorros procurando os donos – infelizmente, sempre um mercado muito aquecido. Ele encontrou a gente.
Não que ele tenha entrado no Facebook e procurado a gente. Mas ele estava no dia 7 de agosto de tarde tentando entender como atravessar a Loureiro (pertinho do antigo apê), quando uma moça muito, muito, muito bacana – Kátia - resolveu parar para ajudar no processo. E assim essa moça percebeu que ele não tinha coleira, estava sozinho e assustado... perdido. Ou procurando. Em situação de rua, com certeza. Mobilização nas redes: Alguém conhece esse cachorro? Não. Mobilização nas redes: Alguém pode ficar com esse cachorro em casa, enquanto procuramos o dono? Mog diz: “Que tal?” Eu digo: “Hummmm, pode ser”. 
Estávamos prestes a nos mudar para o outro Rio Grande. Não o Rio Grande ao sul do Rio Grande do Sul. O outro Rio Grande. O do Norte. 4500 km de distância. Isso já era dia 8 de agosto, e eu estava ainda me recuperando da minha defesa de Tese, que aconteceu... dia 7 de agosto, de tarde. Eu nervoso, tentando convencer a banca. Ele, alguns quarteirões para cima, nervoso, tentando atravessar a rua. A ideia foi dar abrigo ao canino enquanto procuravam o dono. Boa ação mesmo. Two day job, tops. 
Mandamos mensagem para a Catherina (que ajudava a mediar a situação): podemos ficar. Nosso apê antigo era bem espaçoso para dois humanos, dava para abrigar um canino por alguns dias. Mas a cada mensagem que a Kátia ou a Catherina mandavam, eu imaginava que seria dizendo que o dono havia aparecido. Nada. Algumas pessoas vieram atrás – mas todos buscando um cachorro com idade diferente, tamanho diferente, sexo diferente... Ninguém realmente atrás dele. 
E assim ele foi lá para casa. Ainda com possíveis donos aparecendo. Foi uma quarta-feira de noite. Chegou guiado pela Kátia e pela Catherina. Kátia diz: “Olha, ele tem estranhado homens”. Ele dá uma cheiradinha na minha mão e quase pula no meu colo. Ok até aqui. 


E já no apartamento, ele entende que é visita. Anda pelo espaço, cheirando tudo e senta perto da gente na sala. Lindo. Preto. Labrador sem nenhum pedigree, ou no máximo um labralata muito convincente. Literalmente, o cão do rótulo do saco de ração dele é igual a ele. Quem ia abandonar esse cachorro? No mínimo, quem iria perder esse cachorro e não buscar desesperadamente? 
Hora de dormir, ele percebe e vai para a área de serviço. “Não, cara, pode relaxar. Tu veio para dormir na sala.” Levamos ele para a sala, lá ele se assenta e fica. Desligamos tudo, tiramos tudo o que era mastigável de perto e fomos dormir.
Primeira manhã, casa inteira. Nenhum estrago, nenhum xixi. Bexiga de ferro. Legal. Primeiro passeio com a gente, puxando bastante. Olhar isso aí. Primeira visita ao cachorródromo. Legal. Volta para a casa. Primeiro dia, tudo ok. Primeiro passeio vespertino, tudo ok. Em casa, barriga para cima e língua para fora. Nada do dono aparecer. Segunda noite... dois choros. Eita. Dia seguinte, mancando. Eita. O que pode ser? Será que foi abandonado na rua porque tinha alguma doença? Não, patinha torcida. Dois remedinhos e tudo ok. Senta! Aprendeu. Deita! Aprendeu também. Aprende rápido. Aprendeu que a comida chega mais rápido se esperar sentado. Aprendeu que se eu estou de ressaca, com 3 horas de sono e indo levar ele para passear a minha cara de “qual é” significa que é para ele sentar e colaborar na hora de colocar a guia. Aprendeu que 7 da manhã é hora do passeio e foi acordar a gente no sábado. Aprendeu em que lado da cama cada um dorme. Aí a gente aprendeu a fechar a porta do quarto. 
E nada do dono aparecer. Como chamar ele? Decidimos pelo nome Sirius, a estrela mais brilhante do céu, parte da constelação de Cão Maior. Mentira, Sirius na verdade são duas estrelas, Sirius A e Sirius B. Mentira dupla: ele é Sirius porque a Mog é fã de Harry Potter. Entendedores entenderão. 
Mas ele ainda não sabia que o nome dele era Sirius. E nada do dono aparecer para gritar o nome dele de verdade. 
E o Sirius não fazia arte, como todo labrador. Não destruiu um tênis, nem subiu em cima do sofá. Xixi dentro de casa nunca. No máximo no corredor do prédio. Se estatelava na cozinha quando estávamos cozinhando e na sala quando estávamos salando. E saía do caminho quando estava na passagem. Nunca mordeu, adorava um carinho na barriga e latia, como todo cachorro, mas parava quando a gente pedia. Na verdade, nem latir latia. Começou a latir quando percebeu que estava em casa.
E aí apareceram os donos. 
Nós.
Ok, google, como levar o Sirius para Natal, enter. 
Azul? Nope. Gol e Avianca? Até 30 kg, com caixa. Sirius pesa 28kg. No good. Latam? Sim! 45 kgs. Passagem muito mais cara. Tipo, o dobro mais cara. Hummm... Latam Cargo? R$2.133,90. Hahhahah... HAHAHAHAHAHAHAHA... HUAHUAHUAHAUAHAUAHAUAHUAH.

Ok, Latam. Caixa: máximo 115cm de altura, 300cm lineares, sem rodinhas... ok. 
Google, caixa de transporte de cachorro médio porte, enter. R$ 800, R$ 900, R$1200... $HIT! 

Kátia inicia a campanha “Sirius, Go Home”. Caixa? “Eu tenho!” Disseram alguns alguéns. “Tem?! MESMO?!” Dissemos nós. “Talvez eu tenha...” Disseram alguns alguéns. Ok. Caixa R$ 475 pila na pet logo do lado de casa. Dinheiro? R$10, R$20, R$40... R$175 na caixinha da lavanderia da Kátia. Tia Arbel enters the game: R$ 200 para a causa do sobrinho. Massa! Mais 80 pila da caixinha. R$ 455 de doações. Good enough!
Home sweet home


Caixa, check. Ocupava 1/5 da sala do apê antigo. Se colocar 4 rodas, um volante e um motor passa por um Volkswagen Up. 
Não demorou muito para o Sirius entender que ali era a casinha dele. Quando chegou o dia de desmontar o apartamento, com muita gente circulando pela casa, ficou preso ali pela primeira vez. E quando saiu e viu que todas as nossas coisas tinham ido, ficou confuso e preocupado.

Com o primo Chuletinha
Assim como confusos e preocupados ficamos nós com a mudança e com a devolução do apartamento. Mas depois de algumas noites mal dormidas, tudo ficou... ainda indefinido. Mudança de ambiente para a casa do Gui, da Ângela e do Chuleta (desconfiado). 

E assim chegou a véspera da viagem...
E o Sirius começou a tossir. E tossir. E vomitar. Eita. Flávia (veterinária voluntária muito bacana e que merece todas as energias positivas do universo e que cuidou do “passaporte” dele), o que fazer? “CORRE PRO VETERINÁRIO, SEUS MALUCO!”. Ok, é longe, estávamos sem carro. Mari e Israel surgem para o resgate e para a carona. “O que ele tem?!” Ah, um resfriado canino, kinda sucks, mas ele vai ficar bem. Ou a guia nova machucando a garganta talvez. Mas ele está bem. Yay! Viagem ainda de pé. Remedinho na veia para o enjoo, algumas bolsas de soro subcutânea (estranho) e tudo bem. 

E isso foi anteontem. E ontem foi o dia da viagem.
E foi ontem que o Sirius aprendeu o que é voar de avião. 

Tudo certo com a documentação e com a caixa. Nossos corações apertados ao deixar ele com os funcionários da Latam, que foram no mínimo 110% com a gente. Primeiro trecho até São Paulo, eu e Sirius de Latam e Mog de Avianca (muito mais barato). Mog chorando de preocupação em São Paulo, mas conseguimos vê-lo. Assustado, estressado... Mas bem. Próximo trecho até Natal. Motora de sacanagem, avião sambando do começo ao fim. Cada tremida era uma fisgada no coração. Mas tudo bem. Está chegando. 

E chegou. Bem, feliz, morrendo de sede e de fome. Mas acima de tudo, bem. E veio pra casa da Priscila (mãe da Mog), com um belo gramado, árvores e uma cachorra maluca que não sabe receber visitas. O avião agora era só um pesadelo bobo. 


E agora... Agora. Só agora consigo parar para pensar que até o momento, toda nossa preocupação com o Sirius foi com a operação para trazê-lo até aqui. Em cima de toda as muitas demandas da mudança, o Sirius entrou como uma cereja. Uma preocupação a mais. Mas uma boa preocupação. Sirius não era só uma boa causa, era a melhor causa. Era um cachorro procurando se não o dono, um dono. E acabou encontrando dois. Uma família.
E agora vem todo o resto. Todas as outras vacinas. Todas as visitas ao veterinário. Castração (ui!). Coleira anti-pulga, brinquedos, ração, e ele vai ficando velhinho, aiaiai...
Porque cachorro dá trabalho. Mas se você não está interessado em ter trabalho, também não está muito interessado em viver. E por favor, se não quiser trabalho, não se interesse em ter cachorro. O mercado de cães procurando donos já anda muito saturado. 



Hoje de manhã saí com o Sirius da casa da Priscila e descemos a rua. Bem rural, algumas cercas, alguns bois pastando. Descemos a outra rua, alguns cachorros latindo – Sirius não dando bola, outra coisa que ele aprendeu. Descemos mais um pouco e chegamos na praia. Ele levantou a cabeça, sentindo vento forte e ali ficou. Cheirando o ar e vendo o mar. E fomos andando, para a parte mais isolada da praia – só nós dois. Molhamos os pés. A onda trazia água, ele lambia. Água estranha. Mais uma onda, outra lambida. Aprendeu que tem águas e águas. Soltei a coleira e saí correndo, e lá vem ele correndo junto. Ainda no rasinho, aprendeu a pular onda. Ainda no raso, aprendeu a nadar. Labrador(lata) sabe tudo de água. Saímos da água e ele não sabia muito o que fazer com tanta areia e nenhuma árvore. Umas pedras estranhas, roxas. “Eu hein”. Mas voltava para perto quando eu chamava.

Porque agora ele já sabe que o nome dele é Sirius. 
E brincou de pega pega, tomou caldo, me deu uns arranhões, se esticou todo. E olhava pro mar, sem entender o que era aquilo. Mas sabe que gostou. 
















segunda-feira, 12 de junho de 2017

DIA DOS NAMORADOS FORA DE ÉPOCA IV: A MISSÂO - VOLADORES

Ah, Junho. Aquela época do ano em que todas as lojas começam a fazer todo tipo de conexão com o Dia dos Namorados, não importando se é uma sex shop ou uma loja de baterias de carro. Afinal, como provar o seu amor senão mostrando quantos % do seu salário você está disposto a gastar em um presente? Definitivamente precisamos de mais medidas quantitativas para emoções humanas. 

Por um lado, comercialismo barato do Dia dos Namorados.
Por outro lado, torta de graça. 

Ano passado começamos uma sequência de posts que nunca chegamos a terminar  sobre a nossa tradição dos Dias dos Namorados. Como nós não nos amamos, resolvemos há alguns anos atrás que não vamos mais comprar presentes de Dia dos Namorados. Ao invés disso, começamos a tradição de preparamos um jantar em casa no dia 12 de Junho (ou data mais próxima e conveniente), em que sorteamos quem fica responsável pelo prato principal e quem assume a sobremesa. 
Só para lembrar: ano passado o tema escolhido foi comida Peruana e a sobremesa ficou por minha conta. Então, como são as sobremesas peruanas típicas? 
Bom, na média são mais criativas que as nossas, para começo de conversa. Sim, aqui no Brasil fazemos nossas compotas de frutas e derivados, mas na maior parte das vezes nossas sobremesas são compostas de chocolate, açúcar, farinha de trigo, ovos, leite e leite condensado misturados e remisturados em diferentes proporções, consistências e temperaturas.  Na culinária peruana, as origens Incas usavam batata doce, milho e quinoa. Junte-se a isso as influências Europeias e Africanas e temos doce de leite, tortas, nozes, mousses (parecidos com os nossos) e outras coisas como feijão (?). Adicione-se a isso uma grande diversidade de frutas (a la sobremesas Amazônicas) e temos uma diversidade interessante de opções. 
A sobremesa escolhida por mim foram os Voladores, que sim, envolvem chocolate e farinha, mas também pisco e calda de fisalis que transformam completamente o sabor do prato.  Claramente, era um prato além das minhas capacidades artísticas de montagem do prato, mas com um ajuda da Mog tudo acabou bem.


Voladores, by D&G. 


Ingredientes
Bolachas:
- 3 Gemas
- 1 colher de sopa de Pisco
- 15g de manteiga sem sal amolecida (pode ser clarificada para os intolerantes);
- 100g de farinha de trigo;
- 1 colher de chá de fermento químico em pó;
- 1/4 colher de chá de sal;

Creme:
- 100 ml de creme de leite;
- 25g de açúcar;
-100g de chocolate amargo (70% cacau) em pedaços;
- 10g de manteiga sem sal (pode ser clarificada também)

Calda de fisális;
- 100g de fisális (sem a folha);
- 50ml de água;
- 50g de açúcar;
- 1/2 limão;

Como fazer:

- Começando com os biscoitos, bata as gemas até elas ficarem claras (mas não virarem claras, porque você vai estar usando um batedor e não uma varinha do Harry Potter). Você vai conseguir sentir uma mudança na consistência, ficando menos líquida - passe uma colher e vai formar uma listra grossa que demora um pouco a se desfazer. 
- Vá acrescentando aos poucos o pisco e a manteiga amolecida, mexendo sem parar. Aos poucos, vá acrescentando a farinha, o fermento e o sal. Quando começar a ganhar mais consistência, comece a trabalhar a massa com as mãos (acrescente água aos poucos, se sentir necessário).
- Feito isso, use o rolo de macarrão (e se você não tem, custa 3 pila na lojinha da esquina) para abrir a massa em uma superfície levemente enfarinhada - cerca de 1-2mm, a ideia é ficar fininho. Arranje algo redondo com cerca de 3-5 cm de diâmetro para cortar os biscoitos - no nosso caso, usamos uma xícara de café expresso (seja criativo e trabalhe com o que você tem... lembrando que o papelão do papel higiênico parece apropriado mas não é nada higiênico!).
- Vá cortando os biscoitos com o seu cortador improvisado aproveitando toda a massa. Tire os biscoitos cortados, enrole o que sobrou da masa, abra novamente, corte mais biscoitos, tire os cortados... enfim, até terminar toda a massa. 
- Vá colocando os biscoitos cortados numa assadeira em cima de um papel manteiga. MUITO IMPORTANTE: Use um garfo e faça furinhos na superfície da massa. Se não fizer isso, ela vai inchar de ar. Leve ao forno médio por 10 minutos, ou até ficarem dourados. Depois disso, esqueça deles por um tempo, deixando esfriar.

Eles ficam assim, meio sem gosto. 

- Agora o creme. Coloque o creme de leite e o açúcar em uma panela em fogo baixo, e vá mexendo e esquentando aos poucos até o açúcar dissolver bem. Retire  e deixe esfriar por alguns minutos. Coloque o chocolate picado e a manteiga e mexa bem, até virar um creme homogêneo. Hum, essa parte foi fácil.
- Calda de fisális: corte cada frutinha em quatro e coloque na panela com 50ml de água e 50g de açúcar, misture bem e deixe em fogo médio/baixo. Deixe cozinhar por uns 15 minutos ou até reduzir e ficar parecendo um xarope dourado e lindo (cuidado para não engrossar demais ou queimar). Acrescente o suco do meio limão, bata no liquidificador e passe isso por uma peneira, obtendo uma calda no final. Também não foi difícil.

Calda de fisális, linda e poderosa. 

Ok, os biscoitos deram trabalho, mas o creme foi fácil e a calda de fisális também. Agora difícil é montar o sonofabitch sem a devida habilidade artística, mas é possível.  Na verdade, não é nem difícil montar cada biscoito, mas sim enfeitar e deixar o prato apresentável. 
 - Pegue um biscoitinho, coloque uma colher de chá de creme em cima. Pegue outro biscoitinho e coloque por cima, fazendo o sanduíche. Coloque mais uma colher de chá de creme por cima. Outro biscoitinho fechando um sanduíche-iche duplo. Polvilhe açúcar de confeiteiro por cima (isso vai disfarçar os furinhos e deixar bonitinho). Repita a operação até acabar todo o material. Use a calda de fisális, para decorar na hora de servir (fica bonito e acrescenta muito no sabor). 
A apresentação que eu fiz ficou assim:

Eu sei. 

E o que a Mog montou, assim:

A versão em que tudo acaba bem. 


domingo, 16 de abril de 2017

SOPA THAI DE FRUTOS DO MAR

Há algumas semanas tivemos uma perda na Família. Não nos pegou de surpresa, não fugiu ao curso natural, mas nos deixou igualmente com um vazio e uma tristeza enorme. Ron foi se despedindo devagarzinho da vida, ficando mais fraco a cada dia, permitindo que nós, que ficamos, nos preparássemos para esse momento que sabemos que teremos que enfrentar algum dia, mas para o qual nunca estamos prontos. 


1986 - no Mar Morto - eu no colo da mãe com a vó e o Ron

Para aqueles que não conhecem a história, resumo aqui rapidamente. Eu e o Ron entramos oficialmente na família no mesmo ano (1985). Eu porque fui um esperminha ninja guerreiro que vingou e ele porque foi escolhido pela minha avó Esther, que resolveu experimentar um novo rumo para a sua vida ao se casar (pela segunda vez - naquela época isso não era tão comum, acreditem) com um norte americano e se mudar de mala e cuia para "as Califórnia". Nos últimos 32 anos, testemunhamos uma cumplicidade e parceria linda entre os dois até os últimos dias da vida. 



Em 2007 tive a oportunidade de fazer parte bem de perto do cotidiano do casal. Fui passar um semestre na Califórnia estudando e sob os cuidados e afetos que só vó sabe dar. Eu, que não costumo ganhar peso facilmente, rapidinho fui perdendo as calças que já não passavam mais pelas coxas. Todo dia de manhã era agraciada com um prato de frutas (carinhosamente chamado pelo Ron de "Fruti Pleiti"). Não tenho fotos do dito cujo para provar para vocês, mas sem dúvidas ali tinham uns 3/4 de umas 8 frutas diferentes (1/4 minha vovi sempre experimentava para ver se estavam boas antes de servir). Pois então, engordei comendo frutas! 


Em Big-Sur - Esalen. Road trip que fiz com o Ron em 2007 de Irvine a São Francisco pela High Way 1

Eu acordava sempre 30 minutos antes do necessário para poder comer todas as frutas e não desapontar a vó que as cortava e descascava com tanto esmero. Depois do café da manhã eu ia para a Universidade. Chegava em casa normalmente para a hora do carteado. Era um ritual diário ao qual eu era sempre convidada a jogar, mas que aconteceria de qualquer forma independente da minha participação. Normalmente rolava uma partida de Buraco e uma de Cassino. Se a mão vinha ruim, já se mandava um tradicional "I am full of cacarai". Se demorávamos para descartar, Ron mandava logo um "spill, spill". A casa era bilíngue: minha avó falava em português e o Ron respondia tudo em inglês e, assim, eles se entendiam. 
Às vezes eu chegava da aula e minha avó não estava em casa. Normalmente estava em algum dos supermercados próximos, com uma predileção especial pelo orgânico Trader Joe's. Quando eu perguntava por ela, Ron me dizia: "she went to meet her lover, Trader Joe's". 
Um dia eu saí de casa sem levar o meu celular, esqueci o bichinho em cima da mesa da sala. Quando cheguei de volta em casa, vi o Ron em cima de um banquinho mexendo no detector de incêndio. Estava fulo da vida, pois já havia trocado a bateria recentemente e o danado tinha voltado a apitar. Minha avó olhou pra mim e logo me explicou melhor a situação, disse que não era a bateria e sim passarinhos, mas que o Ron era cabeça dura. Poucos instantes depois o tal "bip bip" voltou a soar e eu, como juíza, tive que desapontar os dois, ninguém ganharia a aposta, o tal apito não passava do meu celular que estava o dia todo descarregando, e tirando a paz de quem estava perto.
Outro programa que já fazia parte da rotina eram as sessões de filme. Às vezes no cinema, às vezes no sofá de casa, mas sempre com um tempinho para discutir o tema em seguida, compartilhar impressões e opiniões. 

"Este filme é uma porcaria..."

"Mas vó, você dormiu o filme todo, não pode dizer isso!"
"Se fosse bom eu não tinha dormido. Dormi porque tava chato."
Muito justo.

Foi em uma dessas sessões que o Ron conseguiu me convencer a assistir o seu filme favorito: Cidadão Kane. Definitivamente eu não tive intelecto suficiente para captar o brilhantismo do filme. Adormeci algumas vezes e logo era cutucada com um "Hey, you're missing the best part!". Passados 10 anos, tudo que lembro do filme agora resume-se em uma única palavra: Rosebud.

Outra coisa que curtiam também era comer. Comer bem. Em casa, minha avó ainda gostava de cozinhar, ao melhor estilo brasileiro à moda americana. Não entende como isso funciona? Eu explico. Sabe o nosso feijãozinho? Então, minha avó comprava o feijão preto em lata, e cozinhava ele em uma panela com folhas de louro, por exemplo. Se era uma ocasião especial, tirava do armário os seus pratos de porcelana pintados à mão, por ela mesma, um a um, todos diferentes, únicos. Já sabia que na cozinha da vó eu não tinha muito espaço, então me prontificava a ajudar na louça. Quando eram os pratos especiais eu não tinha mais função, pois uma vez foram ajudar e quebraram um dos pratos do conjunto. Ela ficou com tanta raiva na ocasião, que mesmo tendo-se passado muitos anos, ainda preferia fazer tudo sozinha. 
Mas o casal gostava muito de sair para comer fora também. E para comer bem mesmo gostavam de ir a Laguna Beach, onde viveram por mais de 20 anos. Lá o programa era nostálgico, tudo tinha uma história, o salão de cabeleireiro, a rua onde moraram, a lojinha da dona fulana, o restaurante onde gostavam de ir no ano novo, à beira-mar para minha vó poder jogar uma rosa branca para Iemanjá. 
Um dos restaurantes que curtiam era um Tailandês, daqueles de verdade, onde os garçons te xingam e você nem faz ideia. Ron chegava lá e já sabia o que pedir: sopa de frutos do mar com coco. 

No ano passado, quando o Ron já estava morando em uma clínica, a minha mãe esteve por lá por algumas semanas e foi levada pela minha avó nesse restaurante. Minha mãe até quis olhar o cardápio, mas minha avó logo disse que ela devia comer o prato favorito do Ron que era a tal sopa. Minutos depois eu recebi uma foto no WhatsApp com a legenda: precisamos tentar fazer isso em casa!


A original.

A ideia ficou na cabeça, olhamos receitas, comprei pasta de curry vermelha, acabei não usando por meses, dei para a minha mãe, comprei outra nova pra mim e demorei mais alguns meses com ela fechadinha no armário (até ela vencer - shhhh, usei mesmo assim). Quando recebi a notícia do falecimento do Ron resolvi que era hora de colocar aquele curry em ação. O desejo era poder estar pertinho da avó e dividir com ela um pouco da dor daquele momento. Mas como a distância não permitiu, homenageamos a memória do Ron à nossa maneira.

  
Rendimento: 6 porções
Ingredientes:  
- 250g de camarão G descascado;
- 100g de mexilhão;
- 100g de lula limpa;
- 250g de polvo (cru);
- 1 colher (de sopa) de pasta de curry vermelha (red curry);
- 500ml de leite de coco (de preferência fresco - feito em casa);
- 3 batatas médias;
- 100g de espiguinhas de milho em conserva (mini-milho);
- 16 Tomates cereja;
- 1 colher (de chá) de gengibre ralado;
- Meio pimentão amarelo cortado em tirinhas (juliene);
- Meio pimentão vermelho cortado em tirinhas (juliene);
- 1 cebola cortado em tirinhas (juliene);
- 3 dentes de alho;
- Coentro a gosto;
- Manjericão;
2 colher (de sopa)de Nampla (tempero tailandês à base de anchova);
- 2 colher (de sopa)de Açúcar mascavo;
- Sal;

Como fazer:

- Cozinhe o polvo. Pode ser como ensinamos aqui.
- Cozinhe também as batatas descascadas e cortadas em cerca de 6 pedaços.  
- Prepare uma pasta com o alho espremido, sal e coentro picado e tempere os frutos do mar (exceto o polvo, que estará muito ocupado neste momento);
- Aqueça uma panela e acrescente um fio de azeite. Frite rapidamente a pasta de curry vermelho (essa hora é meio intoxicante, você vai entender), acrescente o gengibre, a cebola e os pimentões e deixe-os suar (dê uma leve fritada em fogo baixo).
- Em seguida, acrescente os frutos do mar que foram temperados e refogue-os até que mudem de cor.


Frutos do Mar já com polvo!

- Acrescente o polvo picado em pedaços de cerca de 2 cm, as batatas já cozidas e os mini-milhos. Mexa rapidamente e acrescente o leite de coco, o açúcar mascavo e o nampla e deixe ferver por cerca de 1 minuto.



- Acrescente os tomates cereja cortados ao meio e as folhas de manjericão.  
- Acerte o sal e sirva em seguida.


Nossa Versão

Sirva com arroz branco!